Num recente editorial do Diário Económico(1), depois de diversas considerações sobre a ADSE, o/a editorialista pergunta “Porque é que todos os contribuintes têm de continuar a pagar para que um subsistema de saúde que abrange apenas uma parte dos funcionários públicos continue a funcionar?”, concluindo com esta questão: “Porque razão temos todos de continuar a pagar para que a ADSE, que é uma duplicação em relação ao SNS, exista?”
Estas perguntas, aparentemente ingénuas, fariam todo o sentido se a realidade fosse aquela que é propalada quer pelo Governo quer pelos comentadores usuais do regime. Sucede que esta história está mal contada, pelo que propomos contá-la de uma forma bastante simples, recorrendo apenas aos dados estatísticos disponíveis.
Eis pois três ideias incontestáveis, mas inconvenientes para o discurso oficial e, por isso mesmo, sempre omitidas no debate público desta problemática:
1.ª ideia:
A ADSE é um subsistema substitutivo do SNS
O sistema de saúde português é composto por 3 sistemas distintos:
- o Serviço Nacional de Saúde (SNS);
- os regimes de seguro social de saúde especiais (subsistemas de saúde);
- os seguros de saúde privados.
O SNS é um serviço público, universal e tendencialmente gratuito, financiado pelos impostos, taxas moderadoras e pela contribuição dos subsistemas de saúde substitutivos. Para além do SNS, 25% da população portuguesa é ainda coberta por subsistemas de saúde, 10% por seguros privados e cerca de 7 % por fundos mútuos.
Quanto aos subsistemas de saúde, dividem-se em públicos e privados, podendo ser substitutivos ou complementares do SNS. Os subsistemas públicos (ADSE, ADM e SAD`s) são substitutivos, uma vez que assumem responsabilidades exclusivas pelo pagamento aos serviços e estabelecimentos do SNS dos cuidados de saúde prestados aos seus beneficiários.
Nesta medida se pode afirmar que a ADSE substitui o SNS.
2.ª ideia:
A ADSE é financiada em 63% pelos trabalhadores e aposentados e em 37% pelas entidades empregadoras públicas.
Enquanto subsistema de saúde dos funcionários e aposentados da Administração Pública, a ADSE possuía no ano de 2013, de acordo com o seu Plano de Atividades (2), um total de 1.332.666 beneficiários, sendo a seguinte a evolução da repartição do seu financiamento:
Gráfico 1. Evolução da repartição do financiamento da ADSE:
Fonte: Plano de Atividades ADSE 2013.
E como se pode constatar do quadro abaixo, mesmo antes da última subida dos descontos de 2,5% para 3,5%, mais de metade do seu financiamento era já assegurado pelos trabalhadores e aposentados (63%, o que equivale a € 232 milhões), cabendo às entidades empregadoras públicas apenas uma parcela residual do esforço (37%, equivalente a € 136 milhões). Da análise do mesmo quadro verifica-se que desde o ano de 2012 o Orçamento de Estado deixou de fazer quaisquer transferências para a ADSE.
Quadro 1. Principais fontes de receita da ADSE:
Principais rúbricas |
2010 |
2011 |
2012 |
2013 |
Contribuições das entidades empregadoras: - ADSE - SNS - Desconto obriga-tório
|
214,9 |
236,0
221,5 |
211,6
226,4 |
106,0 106,0 232,7 |
Reembolsos |
79,9 |
66,7 |
51,7 |
30,0 |
Capitalizações |
4,6 |
0,8 |
: |
: |
Quotizações |
0,5 |
0,1 |
: |
: |
Outras |
2,1 |
0,0 |
: |
: |
|
|
|
|
|
Receitas Próprias |
301,9 |
525,1 |
489,6 |
474,6 |
Transferência OE |
260,0 |
34,4 |
- |
- |
TOTAL DO FINANCIAMENTO |
561,9 |
559,5 |
489,6 |
474,6 |
Fonte: Previsão do Plano de Atividades para 2013.
Constata-se ainda que a comparticipação das entidades públicas vai decrescendo, ano após ano, ao passo que os descontos dos trabalhadores e pensionistas não pararam de aumentar, e de uma forma verdadeiramente vertiginosa desde 2006.
O aumento das contribuições de 1,5% (valor que ainda vigorava no 1.º semestre de 2013), para os 3,5% - cfr. o projeto de Decreto-Lei n.º 10/2014, que altera o Decreto-Lei n.º 118/83, de 25.02 -, significa uma redução adicional de rendimento de trabalhadores e aposentados da Função Pública em mais 309 milhões € (3).
Gráfico 2. Evolução dos descontos na ADSE:

Fonte: Previsão do Plano de Atividades para 2013.
3.ª ideia:
A ADSE é que financia o OE, não o contrário
Sucede que na 1.ª alteração ao OE 2014 (proposta de Lei n.º 193/XII)(4), apresentada no parlamento, o mesmo governo que alega aos quatro ventos a insustentabilidade da ADSE, propõe-se transferir 50% da receita das contribuições das entidades empregadoras diretamente para o Orçamento de Estado (artigo 2.º). Desta forma, é a ADSE que financia o orçamento do Estado, não o contrário. Contornando princípios e regras basilares, defraudando deliberada e reiteradamente ao espírito da lei, o governo desvia milhões do subsistema da ADSE para financiar o orçamento. É pois nesta parte que a história está a ser particularmente desvirtuada.
Do que ficou dito resultam provadas as seguintes evidências:
1.ª evidência. A despesa da ADSE não acresce à despesa do SNS, antes substitui o esforço de financiamento do Ministério da Saúde, com a vantagem adicional de aliviar o recurso ao seu financiamento através de receitas fiscais.
2.ª evidência. A contribuição das entidades empregadoras públicas (2,5% da massa salarial, que desde agosto de 2013 diminuiu para 1,25%), veio reforçar o auto financiamento deste subsistema, deixando a ADSE de receber, desde 2012, quaisquer transferências diretas do OE.
3.ª evidência. Pelo contrário, a ADSE é que financia o orçamento, conforme se prevê na proposta de lei n.º 193/XII (50% das receitas das contribuições das entidades empregadoras vão para o Estado).
4.ª evidência. As receitas próprias da ADSE (contribuições das entidades empregadoras, descontos dos trabalhadores e aposentados) deverão igualar, e pelo 2.º ano consecutivo, o montante total do seu financiamento: € 475 milhões. Ao contrário do que o governo pretende fazer crer na opinião pública, este subsistema é perfeitamente autofinanciável.
Mais de 1.300.000 milhões de portugueses possuem os seus cuidados de saúde autofinanciados (em 63%), uma situação que permite não só aliviar o SNS como ainda redirecionar os meios já de si insuficientes, para os restantes portugueses. Imagine-se o que seria o SNS ter de suportar os cuidados de saúde de mais de um milhão e trezentos mil portugueses. O que implicaria em termos de despesa adicional: aumento do número de profissionais de saúde, aumento do montante do financiamento em medicamentos, em exames, em consultas, na diminuição das listas de espera, etc.
Degradar a ADSE significa como se viu, sempre e em qualquer caso, degradar o SNS. E isto ou se trata de cegueira ou é puro irrealismo.
Nuno Alves. Técnico superior e delegado sindical.
Notas:
1 - A ADSE e os impostos dos privados (Diário Económico, 10/02/2014).
2 - ADSE. Plano de Atividades de 2013.
3 - O aumento de 133% nos descontos para a ADSE, ADM e SAD, o agravamento da degradação do SNS, e o aumento do mercado para os privados (Eugénio Rosa, 19/01/2014).
4 - Disponível em http://www.parlamento.pt/OrcamentoEstado/Paginas/oe.aspx