O resultado das eleições legislativas desencadeou balanços alimentados pela ideia indiscutível de que o grande vencedor foi o PS à custa de todos os outros partidos. À esquerda este balanço coloca o problema da pertinência e utilidade dos acordos que deram origem à Geringonça. Este tipo de crítica encara o que aconteceu nos últimos quatro anos alternadamente como um expediente eleitoral de ocasião irrepetível, ou como uma cedência oportunista aos interesses de regeneração do PS, colocando este em contraciclo com o que vai acontecendo no resto da Europa. Ora o que defendemos é que estes quatro anos criaram uma situação social nova, mais favorável aos trabalhadores, um novo quadro nos partidos à esquerda, e que um retorno às políticas de austeridade terá consequências graves para o PS.
ANTECEDENTES
Poucos se deram ao trabalho de encontrar na história justificação para aquele procedimento tático adaptado ao objetivo de contrariar períodos de grande refluxo social, desmoralização e divisão entre a população trabalhadora, estimulando a inversão de expectativas e a disponibilidade para as lutas. Por exemplo, em 1922, depois da derrota das vagas revolucionárias da Alemanha, Itália, Hungria, França e outros países, que criou o isolamento da Rússia Soviética, e do esgotamento provocado pelos efeitos da I Guerra Mundial, gerou-se um sentimento de desânimo e divisão nas massas populares que urgia contrariar.
A III Internacional, sob a orientação de Lenine e outros velhos bolcheviques, compreendeu a aspiração à unidade e à proteção que muitos setores da sociedade reclamavam face à política impiedosa daquela época e recomendou aos Partidos Comunistas a unidade na ação com os social-democratas em torno de reivindicações concretas que, nalguns casos, poderia mesmo traduzir-se no apoio a maiorias parlamentares ou a governos sem a participação da direita. Veja-se o que diz uma das resoluções do 3º Congresso a propósito do Partido Comunista Sueco.
“Na Suécia, o resultado das últimas eleições parlamentares permite a um Partido Comunista numericamente fraco desempenhar um papel importante. M. Branting, um dos líderes mais eminentes da II Internacional, simultaneamente presidente do conselho de ministros da burguesia sueca, encontra-se numa situação tal que não lhe é indiferente a atitude da fração parlamentar comunista para a constituição de uma maioria parlamentar. O Executivo (da Internacional) prevê que a fração comunista não poderá recusar um acordo, sob certas condições, para apoiar o governo menchevique de M. Branting, como aliás bem fizeram os comunistas alemães face a certos governos regionais (Turíngia). Mas daqui não resulta que os comunistas suecos tenham de abandonar a sua independência ou deixar de denunciar o verdadeiro caráter do governo menchevique. Pelo contrário, quanto mais poder ganharem os mencheviques mais irão trair a classe operária e mais os comunistas deverão esforçar-se por os desmascarar perante as massas trabalhadoras”.
Esta declaração de 1922 segue-se a banhos de sangue provocados pela intervenção de governos social-democratas para derrotar as mobilizações de rua e à votação do SPD em 1914 no parlamento alemão dos créditos de guerra ao lado da direita, o que levou Lenine a qualificá-los de “social-traidores” e “social-chauvinistas”. O envolvimento da social-democracia ao lado das burguesias nacionais na disputa que nada tinha a ver com os interesses dos trabalhadores, a I Guerra Mundial, foi o marco para a cisão entre social-democratas e comunistas, consumada logo a seguir à revolução russa de 1917.
CIRCUNSTÂNCIAS POLÍTICAS EM 2015
Em 2015 viveram-se tempos dramáticos na sequência das imposições da Troika e do governo PSD/CDS, e a maioria da população trabalhadora desejava uma unidade à esquerda capaz de assegurar proteção face a novas medidas de austeridade. O programa eleitoral do PS não dava essa garantia e daí o fraco resultado obtido por este partido, tendo os eleitores distribuído a sua confiança por outras formações políticas de esquerda e dado maioria relativa ao PSD. Por outro lado, a crise do capitalismo neoliberal provocou emigração, altas taxas de desemprego, de risco de pobreza e desigualdades tornando sombrias as perspetivas de vida de muitos portugueses.
O desafio de Catarina Martins a António Costa e a participação de Jerónimo de Sousa abriram caminho a uma solução desejada por muitos e foi isso que deu a melhor votação de sempre ao Bloco de Esquerda e um resultado em linha com a tendência de eleições anteriores ao PCP. A votação à esquerda mandatou Bloco e PCP para prosseguirem uma linha de compromisso com o PS capaz de evitar males maiores, restabelecer confiança perdida e criar uma unidade (defensiva) que não se via desde o 25 de Abril.
A soma dos partidos que suportaram a Geringonça ultrapassou o total dos votos da direita em mais de 700 mil e, pela primeira vez, esta supremacia não se ficou por uma maioria aritmética, converteu-se numa solução política durante quatro anos. Não é possível compreender o resultado das eleições de 2019 e as potencialidades do futuro próximo sem ter em conta estas condicionantes. Desvalorizar a lógica dos comportamentos passados e os efeitos que provocam no presente não ajuda a responder da forma mais adequada às exigências do futuro.
SITUAÇÃO POLÍTICA EM 2019
A maioria dos balanços das eleições de 2019 despreza as considerações anteriores e concentra-se na contabilidade de ganhos e perdas. Isso acontece mesmo nos balanços daqueles que reclamam uma maior valorização do trabalho político extraparlamentar, separando artificialmente o impacto que a luta nas instituições também pode ter na criação de mobilização de massas nas ruas e nos locais de trabalho e na mudança das expectativas. Não ter em conta esta contradição é não compreender a operação política Geringonça. Na maioria dos casos isto acontece por falta de reflexão, algumas outras por má-fé.
A Geringonça criou adeptos, tornou-se popular e isso traduziu-se nos resultados. Os partidos que a apoiaram atingiram globalmente quase mais um milhão de votos que toda a direita somada (apesar do aumento da abstenção). O conjunto da direita saiu enfraquecido e isso é bem visível a crise que atinge os seus partidos. Mas, sobretudo o estado de espírito da população trabalhadora e a disponibilidade para a luta tornou-se maior, como ficou ilustrado no recente surto grevista no setor público e privado. Na maioria dos casos foram lutas para fazer subir o salário médio de muitas categorias profissionais empurradas pelo efeito psicológico da subida do salário mínimo. Isto mostra que uma determinada solução política de governo não é neutra no plano das expectativas dos trabalhadores e da luta no terreno.
O PS limitou-se a gerir a aceitação que o governo ganhou, a neutralizar os efeitos negativos de alguns conflitos (tempo de serviço dos professores, enfermeiros, motoristas de matérias perigosas) e a aproveitar a crise da direita, alimentando a hipótese de uma nova Geringonça. O Bloco lutou contra a maioria absoluta do PS para manter aberta a possibilidade de entendimentos pós-eleitorais (nova Geringonça) e o PCP cedo se retirou desta lógica isolando-se, dando espaço ao PS e retirando utilidade ao voto com o slogan que repete há 40 anos, como se nada tivesse acontecido nos últimos quatro: “Avançar é Preciso, Mais Força à CDU”.
BALANÇO FINAL
As circunstâncias mudaram e criou-se um novo ciclo político que vai exigir grande capacidade tática. À esquerda o PCP foi o partido mais penalizado pelos resultados porque adicionou ao lento declínio que vinha vivendo o regresso ao registo tradicional, muito para satisfazer as pressões do seu núcleo duro construído com essa orientação. Esta evolução pode ter consequências tanto no plano sindical como autárquico que imposta analisar. O Bloco, que não dispõe do enraizamento social do PCP, fez o que lhe competia mantendo o diálogo com os setores que o têm apoiado sem defraudar as esperanças de colaboração com outros partidos para voos mais altos, apresentando condições exigentes para que isso pudesse acontecer. A apresentação da proposta para novo acordo escrito, significou assumir a exigência de um novo compromisso e de querer partilhar os ativos da Geringonça. E o PS, ao não aceitar, deu sinal claro de não querer nem uma coisa nem outra. Se o Bloco não o tivesse feito pagaria muito caro perdendo a simpatia que foi ganhando e acusado de tacticismo.
As perdas do Bloco devem-se à volatilidade de franjas do seu eleitorado disputadas nas principais zonas urbanas por fenómenos de dimensão internacional como o PAN, com a auréola equívoca de partido verde que atrai algum voto jovem, à perda do voto de protesto nas zonas suburbanas para o Chega, à bipolarização da luta política na Madeira bem como à impossibilidade de repetir a conjuntura de há quatro anos especialmente favorável na região e à capacidade do Livre em Lisboa para tirar partido da intenção de entendimentos com a restante esquerda. O Bloco sobe nalgumas outras zonas tornando-se um partido com uma distribuição nacional mais homogénea, o que lhe pode conferir um novo folego no terreno autárquico, onde poderá apresentar-se “contra a corrente” do aparelhismo partidário/governativo do PS e das dificuldades do PCP.
O ativo Geringonça produziu os seus efeitos e poderá continuar a ser usado pelo Bloco como elemento de referência quando e sempre que o governo do PS adotar medidas antipopulares, sobretudo se a conjuntura económica se degradar e a dependência face às exigências do capital financeiro se tornar mais evidente. O Bloco, mais que autoproclamar-se como partido de oposição, deve preparar os desafios ao PS e restante esquerda que evitem a irrelevância política e assegurem um caminho próprio, tirando partido das diferenciações que possam surgir. Só assim poderá corresponder à esperança e à exigência de quem confiou no BE e preparar-se para os próximos desafios dentro e fora do Parlamento.
ADELINO FORTUNATO
ANA MARGARIDA ESTEVES
ANA VIEIRA DE CASTRO
ANTÓNIO MARINHO DA SILVA
CELINA ADRIANO
DANIEL BAPTISTA
HELENA FIGUEIREDO
JOÃO NÓBREGA
JORGE PEREIRA
JOSÉ MANUEL BOAVIDA
MARIA JOSÉ VITORINO
NELSON CALHEIROS
PATRÍCIA BARREIRA
PAULINO ASCENÇÃO
RUI CURADO SILVA
SARA GOULART DE MEDEIROS
VANESSA PEREIRA
WILLIAM NAVAL
(Radar – Rede de Ativistas para Debate, Ação e Reflexão)