Ciumeiras à parte - que também as há, tanto quanto li e ouvi, mais
ninguém condenou o Acordo. Talvez, eventualmente, mais uma ou outra
voz, enfim, a tal excepção que confirma a regra.
O ruído provocado por este coro de críticos do Acordo estabelecido
entre Sá Fernandes e António Costa coexiste com o silêncio dos
dirigentes do PS sobre o assunto. Esta coexistência dá que pensar. Não
creio estar a especular ao admitir ou mesmo concluir que, na direcção
do PS, também não morrem de amores pelo acordo.
2. Porquê esta contestação? Porque todos esperavam e previam - e
alguns desejavam-no mesmo, que António Costa se entendesse com a
direita. Com Negrão ou com Carmona. Ou mesmo com os dois. Mas nunca com
a esquerda e muito menos com o Bloco. E, nunca mas nunca, apenas com o
Bloco e, ainda por cima, dando guarida às suas principais propostas
para Lisboa.
Antes das eleições e da própria campanha, meses a fio, estes
inflamados críticos de agora - uns e outros, já se inflamavam
prognosticando e anunciando que, sem maioria absoluta, o destino de
Costa era, inevitavelmente, uma coligação com a direita. Mas,
enganaram-se. Incapazes de o reconhecer, ficam-se pela contestação. O
que vindo da direita ainda se compreende. Mas, de outras latitudes, é
bem mais estranho. Porquê?
Porque, em Lisboa, a direita perdeu. Mais, teve uma dupla derrota:
não só os seus candidatos perderam as eleições como também não
recuperaram na "secretaria" aquilo que tinham perdido nas urnas.
António Costa não seguiu o guião que lhe fora destinado por tão
ilustres videntes e acabou por não se entender com a direita.
A direita ficou possessa com o Acordo de Lisboa. Por uma simples
razão: porque ele desenvolve e consolida a sua derrota. A direita sabe
- todos sabemos, que sem este Acordo, outro poderia ter sido o rumo dos
acontecimentos. Com evidentes prejuízos para a população de Lisboa.
Esta contestação, de facto, chora as dores da direita. As lágrimas da direita, compreendem-se. As outras, estranham-se.
3. Uns e outros choram ainda por uma outra razão. Surpreendeu-os
e desagradou-lhes que o BE tivesse uma opção própria, autónoma,
diferente da seguida pelo PCP. Ainda por cima porque cedo o PCP
anunciou que não faria com António Costa o que fez durante quatro anos
com Rui Rio. Se o PCP recusava o entendimento com António Costa, o BE
não tinha outra saída que não fosse fazer o mesmo. Mais uma vez,
enganaram-se.
Percebe-se que a direita prefira um Bloco que se comporte como um
clone do partido de Jerónimo de Sousa, conduzido e determinado por
mesquinhos ganhos partidários mas indiferente aos ganhos políticos que
certas mudanças proporcionam. A direita deseja um Bloco sectário, um
Bloco à PCP, porque não ignora nem esquece como a obsessão anti - PS da
direcção comunista lhe tem evitado prejuízos maiores em situações de
risco e aperto político.
Quanto aos outros críticos, o seu sectarismo não constitui novidade
nem surpreende. Está-lhes na massa do sangue, faz parte do seu código
genético. Sectários nasceram, sectários continuarão. Desprezando, tal
como o PCP, as mudanças e os ganhos políticos, tanto lhes faz que a
política da Câmara seja melhor ou pior para os lisboetas. Isso é
pequena política. O que lhes interessa é fazer prova de vida, não cair
no esquecimento, garantir umas linhas na comunicação social. Move-os
apenas o ruído. Sem qualquer estratégia política, resta-lhes o recurso
às tácticas da sobrevivência política.
Igualmente incompreensível é, ainda, que estes membros do Bloco
admitam e pretendam um Bloco auto-limitado e resignado a copiar e a
seguir as posições dos outros protagonistas da esquerda, alienando a
sua autonomia e independência de decisão. Para isto, não tinha valido a
pena constituir o Bloco.
4. São, pois, de crocodilo as lágrimas derramadas pelos críticos
do Acordo de Lisboa, quando choram pela autonomia do BE. Nem uns nem
outros estão minimamente preocupados com isso. Pelo contrário, um Bloco
preso a estratégias e interesses alheios, um Bloco manietado e a
reboque de outros seria o quadro mais favorável e conveniente aos seus
propósitos.
Criticar o BE e a sua direcção porque o Acordo de Lisboa não
salvaguarda nem defende como devia a autonomia do Bloco, é do domínio
da mais refinada hipocrisia política. O Acordo de Lisboa é, primeiro
que tudo, uma afirmação de vontade própria, de independência de
decisão, de autonomia política. Uma demonstração de maioridade do
Bloco.
5. De tanta hipocrisia não se pode esperar grande coerência no
ataque ao Acordo de Lisboa e à decisão do Bloco. Para uns e para outros
os argumentos são como pastilha elástica. Diz-se uma coisa e
exactamente o seu oposto.
A direita alerta para o perigo da esquerdização do PS e antevê vida
difícil para António Costa, agora tornado refém de Sá Fernandes. Em
delírio, há mesmo quem imagine Lisboa como a futura Havana da Europa.
Se para estes o Acordo traduz a submissão do PS ao Bloco de
Esquerda, outros sentenciam o contrário e anunciam mesmo o fim da
oposição bloquista ao governo de José Sócrates. Do alto das suas
certezas, garantem que foi o Bloco que se rendeu ao PS - e ao pior PS,
dando por certo que em 2009 - logo à primeira oportunidade, o BE
entrará num novo governo socialista, se não mesmo nas próprias listas
candidatas às legislativas desse ano.
Há mesmo quem, obnubilado pela sua conhecida fantasia, anteveja o fim do Bloco e o condene ao asilo e à reforma no PS.
6. A contestação ao Acordo de Lisboa e à posição assumida pelo
BE tem de tudo: contradições, deturpações, falsificações, hipocrisia,
sectarismo, preconceito, miopia e estupidez política. Mas, apesar
disso, não deixa de ser surpreendente que silencie e ignore duas
questões essenciais, aliás as únicas que são decisivas nesta
controvérsia: o Acordo é bom ou mau para a cidade e para os lisboetas?
Sá Fernandes declarou-se ou não disponível para uma convergência à
esquerda se esta contemplasse os seis pontos programáticos que constam
do Acordo de Lisboa?
Estas são as questões essenciais. E as respostas são simples,
evidentes e incontestáveis: primeiro, as políticas consagradas no
Acordo são boas para Lisboa e para os lisboetas e até agora ninguém
defendeu, argumentou ou demonstrou o contrário; segundo, toda a
campanha de Sá Fernandes girou em torno daquela disponibilidade e
daqueles seis pontos.
Antes das eleições ninguém contestou o programa ou aqueles seis pontos, nem tão pouco a intenção anunciada por Sá Fernandes.
Após as eleições, Sá Fernandes fez o que anunciou e cumpriu o que
propôs. Os compromissos eleitorais não podem reduzir-se a simples
propaganda, são para respeitar.
Quanto ao Acordo de Lisboa, o Bloco não só esteve bem como não podia nem devia ter feito outra coisa.
7. A contestação ao Acordo de Lisboa sustenta-se na habilidade
de ocultar estas duas questões e na fuga consciente e deliberada ao
exercício e à obrigação de lhes responder.
Mas, também, no truque de condenar o Bloco não por aquilo que ele
é, faz, significa e representa hoje mas por aquilo que se supõe,
imagina e anuncia que vai ser no futuro: apêndice, muleta, parceiro ou
aliado do PS.
Quando a realidade não serve de argumento ou é ela própria o melhor
desmentido, todas as fantasias e premonições são possíveis. Sem razão
nem argumentos, o expediente é a futurologia. Como se a política fosse
um jogo de cartomantes.
Não se responde nem combate a cartomancia com mais cartomancia. No
discurso do futuro, cabe tudo e mais alguma coisa, todas as boas
intenções e promessas.
Contra a cartomancia, em política e no mundo real, o que interessa são os factos.
Não os que supostamente hão-de vir ou acontecer, mas os do passado.
Aqueles que a nossa memória regista e sobre os quais a nossa
inteligência crítica se pode pronunciar. Não é no futuro mas sim no
passado que se recorta e encontra a identidade do Bloco.
O Bloco tem oito anos. Oito anos de luta política e social por uma
alternativa socialista e popular. Contra a direita e os seus governos.
Contra as políticas neo-liberais do PS e dos seus governos. Oito anos
que falam por si, oito anos sem qualquer cedência ou submissão ao
Partido Socialista ou a qualquer outro. Oito anos de construção e
afirmação de um projecto próprio, autónomo e independente, motor à
esquerda da alternativa socialista.
Julgue-se, hoje, o Bloco por estes oito anos e não por aquilo que a cartomancia anuncia.
terça-feira, 14 agosto 2007 18:51
Opinião: Os efeitos da silly season

Por João Semedo, deputado e da Comissão Política do Bloco de Esquerda