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homofobiaA concentração STOP HOMOFOBIA, que um conjunto de associações lésbicas, gays, bissexuais, trans (LGBT) e de defesa dos direitos humanos levou a cabo em Viseu a 15 de Maio, foi mais do que uma resposta à agressão organizada de homossexuais que se vinha verificando naquela cidade, há cerca de um ano, com a complacência das autoridades e instituições locais. Teve um significado histórico para o movimento LGBT português e representou o início de uma mudança de paradigma.

Artigo de
Sérgio Vitorino

O significado histórico está em que se tratou da primeira vez que em reacção a uma situação de violência homofóbica, se organizou um protesto especificamente destinado a visibilizá-la. O movimento LGBT mostra finalmente como tem vindo a sair de Lisboa e a crescer nacionalmente, mas sobretudo dá sinal de querer chegar ao interior do país, onde casos como o de Viseu mais se desenrolam, ou aos muitos interiores de que Portugal é feito, para fazer um trabalho de base, a pedagogia directa junto das populações, que, para lá das reivindicações legais do movimento, está quase toda por começar.


Viseu, cidade dos silêncios e do conservadorismo moral, viu-se confrontada com a Viseu progressista, e o conflito sub-reptício e em surdina que sempre se travou à volta do problema da homofobia foi exposto ali e ao público em geral, não apenas pela concentração em si, mas sobretudo pelas reacções positivas e negativas de que esta foi alvo na cidade, e que os meios de comunicação social documentaram. É inútil combater fantasmas. Para que o conflito dê frutos - e possamos intervir nele com eficácia - é necessário primeiro forçar a que a sua existência seja reconhecida. Assim foi.


Sem menos importância, o início de um novo paradigma: o impacto mediático da acção foi muito considerável e representou, sobretudo, uma alteração profunda no discurso mediático costumeiro sobre homossexualidade. Pela primeira vez não são os homossexuais quem tem que se explicar, mas sim a "homofobia", termo que tardava a entrar no léxico do discurso quotidiano. E é esta, como comportamento - e não os comportamentos homossexuais - que está no centro de análise e da reprovação.


Eis um elemento-chave a aprofundar, não apenas pelo que significa como potencial de alteração da relação de forças na sociedade portuguesa relativamente ao tema dos direitos da população LGBT, mas sobretudo pelo impacto que pode ter na (fraca) consciência e na (pobre) auto-estima da própria comunidade homossexual, ainda demasiado limitada pela sua própria internalização dos valores homofóbicos. 

 

Silêncio insuportável


Insuportável, após a interpelação por vários partidos da oposição na Assembleia da República e após a realização deste protesto em Viseu, é o silêncio do Governo, nomeadamente do ministro da Administração Interna, António Costa, que nunca se pronunciou sobre o caso ou sobre a exigência de um inquérito à actuação bastante duvidosa das forças policiais de Viseu perante as agressões. Claramente, o Partido Socialista não retirou as lições necessárias de uma campanha legislativa em que a homofobia, ao invés de tema do debate político, foi resumida a arma de arremesso com fins populistas e homofóbicos. É precisamente este tipo de silêncio que, além de representar uma enorme falta de coragem política, propicia essa utilização oportunista.


E no entanto, mesmo sem qualquer reconhecimento político-institucional estatal, o movimento LGBT tem acumulado pequenas vitórias no campo legal, de que os últimos episódios foram a integração do artigo 13º na Constituição, instituindo o princípio de não-discriminação em função da orientação sexual, e a declaração (ainda não-definitiva) da insconstitucionalidade do artigo 175 do Código Penal, que diferencia abusivamente a gravidade da violação de menores conforme o crime seja hetero ou homossexual. Em termos da igualdade formal de direitos, e embora essas estejam entre as batalhas que maiores resistências despoletam, o movimento aproximou-se rapidamente de uma situação em que praticamente apenas o universo do direito a constituir família em pé de igualdade está por conquistar. Concretamente, esse último reduto da homofobia legal materializa-se na exclusividade do acesso de casais heterossexuais às figuras do casamento civil e da adopção conjunta.


Há séculos que pessoas invisivelmente homossexuais exercem parentalidade dentro da "prisão" do casamento, fachada para a qual eram empurrados/as em nome das aparências e da sua própria protecção. Trata-se agora de fazê-lo livremente. Mas o debate da adopção está bastante "armadilhado", como qualquer debate sobre os direitos das crianças num país em que o próprio sistema de protecção de menores é mais parte do problema do que um elemento para a solução. A "obsessão" que leva a que a adopção seja sempre o "mas" quando se trata de direitos LGBT, oculta - porque interessa que oculte - o verdadeiro debate, sobre os direitos dos milhares de gays e lésbicas com filhos e filhas biológicos que partilham responsabilidades parentais com os/as repectivos/as parceiros/as sem que isso seja reconhecido, e sobre a discriminação que já hoje essas crianças sofrem por parte de um contexto social e cultural heterossexista (o mesmo que veda o direito de adopção supostamente em nome dos direitos dessas mesmas crianças).


O que faz do debate do direito ao casamento uma evidência estratégica de primeira linha. Ou sim ou sopas. Ou se admite que outras formas de amar devem ser reconhecidas - e qual poderá ser o mal social decorrente da associação afectiva voluntária de duas pessoas adultas?" - ou se admitem posições abertamente homofóbicas. Este é um debate que separa águas sem deixar espaço para homofobias "ligth" do género "sim, mas", que tanto envenenam o debate ao admitirem a universalidade da cidadania mas com excepções e cidadanias "de segunda". Discutir o casamento é, portanto, mais uma vez, visibilizar a homofobia, obrigá-la a deixar a sua posição implícita e levá-la a declarar-se, o que permite desmontá-la.


O efeito espanhol

O tema do casamento veio, portanto, para ficar, e à sua oportunidade estratégica não escapam os ventos que têm soprado do Estado Espanhol, com o alargamento do direito ao casamento com plena igualdade de direitos para os casais do mesmo sexo. O impacto em Portugal é claro e este é urgentemente o momento para o aproveitar.


Não devemos, porém, ilusionar-nos com o país vizinho. Qualquer semelhança entre a situação espanhola e a portuguesa é pura coincidência, a não ser a fragilidade do movimento LGBT de ambos os lados da fronteira. São obviamente, fragilidades diferentes. Os nuestros hermanos constroem o seu movimento desde a morte de Franco, enquanto o movimento associativo LGBT português não celebrou ainda sequer uma década de existência. Em Espanha, ocorreu uma mudança social e mental profunda sobre estas questões, que em Portugal só vai a metade do caminho (sejamos optimistas). Mas a aparente força do movimento LGBT espanhol merece análise, porque vista de perto revela as fragilidades próprias de um balão de ar, insuflado com base numa força mediática e numa estratégica aliança com o mundo comercial - a "peseta rosa" - que leva um milhão de pessoas a reivindicar o casamento no Gay Pride em Madrid mas não é capaz de mobilizar duas centenas de pessoas (sensivelmente tantas quantas associações LGBT existem em Espanha) para uma manifestação de protesto contra mais um assassinato homofóbico.


À reivindicação do casamento, avisam activistas do lado de lá, seguir-se-à a desmobilização, sem que o movimento, institucional e pequeno (à escala espanhola) apresente alternativas de mobilização e envolvimento para lá da agenda "legal". Esse efeito, que já experimentámos por cá, após a conquista da Lei das Uniões de Facto igualitária, é menos grave por lá do que em Portugal, precisamente porque hoje a sociedade espanhola é muito mais aberta à homossexualidade que há dez anos atrás. O problema é que a homofobia, apesar de tudo, persiste e actua, e continua a exigir capacidade de resposta. Por cá, a mudança é mais lenta, e a reivindicação do casamento - como qualquer outra para a igualdade - exige uma base social ampla, e portanto mobilização e a generalização de uma consciência LGBT que o mero trabalho institucional ou de mudança legal motiva mas, só por si, não constrói.


Limitações próprias de um movimento diverso mas maioritariamente dirigido por correntes "integradoras", por oposição às que, compreendendo as raízes profundas da discriminação, defendem a necessidade de uma transformação social muito mais ampla da qual é parte inalienável a extinção da homofobia. É que, mais que preconceito, a homofobia é um sistema político e social de dominação que integra quadros maiores de opressão, o que implica alterar estruturas, e não apenas mentalidades ou legislação no quadro de uma sociedade estruturalmente discriminatória como é a actual.


Em nome dessa visão política, não só não podemos deixar de travar a luta pela igualdade formal, começando pelo casamento, como não podemos perder de vista o trabalho de sapa com o país e a comunidade lgbt reais, bem como a ainda limitadora pequenez do movimento associativo. Para a sua ligação ao país real, há-te ter contribuído Viseu.

Sérgio Vitorino