...mas também mais Aminas
"A escolha que nos compete fazer neste momento não é entre fronteiras abertas ou fechadas. É saber se queremos ter um número crescente de habitantes a trabalhar no nosso país como estrangeiros, sem identificação com a comunidade nacional e sem direitos sociais, ou uma sociedade cosmopolita e que integre a diversidade. A resposta, para o Bloco de Esquerda, é simples, clara. Queremos mais Decos e Obikwelus, mas também mais Aminas, que tragam até nós os seus talentos e as suas competências" afirmou a deputada Ana Drago na AR.
Intervenção da deputada Ana Drago (PAOD, 21 de Junho de 2006)
De Lisboa ao Porto, de Bragança a Portimão, encontramos as avenidas, as ruas e as praças do país encontram-se repletas de bandeiras nacionais. A razão para tal euforia - a sorte jogada pela selecção nacional de futebol no mundial. A selecção que tem como uma das suas principais estrelas um jogador nascido e criado no Brasil.
A sorte de Deco é invulgar, e certamente muito diferente da de uma mulher, de origem indiana, que recentemente pretendeu naturalizar-se portuguesa. A história, bizarra, tornou-se conhecida pelos relatos que a imprensa fez de uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Chamemos-lhe Amina, nome fictício. Amina está casada com um português, vive em Portugal há mais de 9 anos, e fala fluentemente a nossa língua. Amina trabalha no nosso país, é sócia de dois estabelecimentos comerciais e está a tirar a carta de condução. Amina tem filhos que nasceram em Portugal e são portugueses, que estudam em escolas portuguesas, e que praticam desporto em clubes portugueses, dos quais Amina é sócia.
Mas nada disso foi suficiente para que o tribunal considerasse provada uma "ligação efectiva à comunidade nacional". Por isso recusou atribuir-lhe a naturalidade portuguesa, como era seu desejo. Na decisão, o tribunal considerou mais importante para avaliar a integração de Amina na comunidade portuguesa o desconhecimento do hino nacional, de acontecimentos e personagens da história de Portugal, e da actualidade nacional considerados relevantes.
Este absurdo critério de nacionalidade, certamente, satisfará os militantes neo-nazis do PNR, que se manifestaram no dia 10 de Junho para exigir a expulsão de Deco da selecção.
Mas sejamos claros: o Tribunal da Relação não fez a lei que aplicou. A recusa na atribuição da nacionalidade a Amina só foi possível porque a lei em vigor não define o que é isso da "ligação efectiva à comunidade local".
A ironia é que todos nós já assistimos a dezenas e dezenas de reportagens televisivas, nas quais a maioria dos portugueses inquiridos não passariam neste meticuloso teste da nacionalidade levado a cabo pelo Tribunal da Relação de Lisboa. Actualidade nacional. Qual é o nome do actual Ministro do Ambiente? História e identidade nacional. Quantos cantos tem os Lusíadas? Símbolos nacionais. A estrofe do hino diz "a voz dos teus egrégios avós, que há-de guiar-te" ou "que hão-de guiar-te?"
Para o que conta, para o que é responsabilidade desta Câmara, do Governo, a recusa da nacionalidade a quem vive, trabalha, casa, tem filhos aqui, esta decisão absurda, foi possível porque a legislação permite um poder discricionário que legitima a injustiça.
Este caso é o sinal de alarme para que o Governo entenda que na lei da nacionalidade tem que regulamentar a arbitrariedade, estabelecendo requisitos mais facilmente verificáveis: tempo de residência no país, ou o casamento com cidadãos nacionais.
Mas nos últimos dias não são só os critérios de nacionalidade que estão em debate no espaço público. Depois de meses de aparente impasse, o Governo apresentou o ante-projecto da Lei da Imigração. O ministro António Costa aqui esteve, ontem, na Assembleia da República, e solicitou aos partidos da oposição os seus contributos para a discussão pública.
Dissemo-lo ontem, repetimo-lo hoje: pela parte do Bloco de Esquerda estamos preparados.
E estamos preparados apresentando alternativas à actual legislação que já deu provas do seu clamoroso falhanço quer no combate à imigração ilegal, quer da sua ineficácia na integração das comunidades migrantes.
Infelizmente, a proposta do governo é uma oportunidade perdida, uma desilusão para as expectativas criadas. Fala por si, sem precisar de sub-texto do Ministro: faltou coragem ao Governo do PS.
O Ministro bem procura ensaiar um discurso mais arejado do que o da anterior maioria PSD-PP, mas o ante-projecto mostra que se vergou às ideias dos sectores mais conservadores da direita.
Entendamo-nos: a lei da anterior maioria PSD/CDS-PP era um dispositivo de fabricação de imigrantes ilegais. Criando todo o tipo de obstáculos à entrada legal ou à legalização, foi sempre um instrumento de retórica conservadora e negação de oportunidades e direitos a todos os que abandonam as suas terras e as suas casas para lutar por uma vida melhor. Foi sempre um convite ao florescimento das redes que controlam o mercado de mão de obra ilegal.
Não é uma caracterização forçada - convém lembrar que, no único ano em que se tentou aplicar este sistema, para uma quota prevista de 8500 imigrantes apenas se legalizaram 899.
Ora, partindo da crítica à lei do anterior executivo, o actual governo mantém a lógica e a política das quotas de imigração. Já não se chamam quotas, e já não são por sectores. São a mesma coisa, mas tem agora o nome de contingente global de oportunidades de emprego.
Com esta proposta do governo mantém a mesma restrição à imigração legal. Por isso, o resultado dificilmente será diferente - teremos a manutenção da lógica de fabricação de imigrantes ilegais.
Para ter um visto para poder trabalhar no nosso país, os cidadãos estrangeiros têm que apresentar uma declaração individualizada da entidade patronal portuguesa manifestando interesse em contratá-los.
Lembremos o que disse o próprio director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Manuel Jarmela Palos, numa entrevista dada no ano passado: como é que alguém contrata, ou declara a intenção de contratar um trabalhador que não conhece e nunca viu?
A pergunta é porque decidiu o Governo do Partido Socialista insistir no erro, manter a mesma lógica?
Até porque há exemplos recentes de coragem de outros governos europeus, com taxas de imigração bem superiores. Em Espanha, pouco depois de ganhar as eleições, José Luís Zapatero permitiu a legalização a mais de 500 mil imigrantes. Em Itália, o novo governo já anunciou que pretende abrir um processo para regularizar a situação aos cerca de 480 mil imigrantes que se encontram ilegalmente no país.
Ao contrário de outros governos europeus, o PM José Sócrates esquece o mais óbvio: quem vive e trabalha em Portugal, quem entra no país procurando melhorar a sua vida, trazendo a sua coragem, encontrando trabalho, contribuindo com o seu esforço para a riqueza nacional, deve ser legalizado. É esse o princípio republicano. Deve ser essa a prioridade das políticas de imigração.
Não é por termos a legislação mais restritiva da Europa, recorrendo novamente às palavras do director do SEF, que a imigração vai estancar. Portugal já é um país de imigrantes e continuará a ser um país de imigrantes, independentemente das leis aprovadas.
A escolha que nos compete fazer neste momento não é entre fronteiras abertas ou fechadas. É saber se queremos ter um número crescente de habitantes a trabalhar no nosso país como estrangeiros, sem identificação com a comunidade nacional e sem direitos sociais, ou uma sociedade cosmopolita e que integre a diversidade.
A resposta, para o Bloco de Esquerda, é simples, clara. Queremos mais Decos e Obikwelus, mas também mais Aminas, que tragam até nós os seus talentos e as suas competências, e quem sabe venham um dia a desejar e a pertencer ao povo português.
Que cheguem, trabalhem, se integrem, e aprendam a trautear o hino com dignidade.
Não há homens e mulheres ilegais. Há só gente que luta pela vida e políticas de imitação cegas e injustas.